segunda-feira, 26 de novembro de 2012

"Abrir os olhos"



Uma espera larga gravita na sala, se expande de parede a parede embora as conversas e o arrastar de classes e cadeiras intentem roubar-lha espaço. Nota-se um olhar vagueante, como a percorrer toda a extensão da esperança que paira. E eis que o ar se dissipa de rompante, causando um estrondo apenas ouvido por quem esperava, espécie de excitação que a chegada de quem se espera provoca no espectador, Chegou o professor, exclamou o aluno a si mesmo novamente, Chegou o professor.
Figura alta, gigantesca ao olhar do franzino aluno de dez anos, era o imponente professor de ombros largos que um abraço assombraria, de mãos grandes que num aperto de mão caberia o mundo. Quando se tem pouca idade, as pessoas adultas e as coisas parecem imensas, pessoas de estatura avantajada são gigantes olhados de baixo, a escola, um vasto palácio com seus labirínticos corredores e salas insondáveis. Depois que se cresce, e cresce também a visão de mundo, se percebe quão pequeno se era, tanto num tamanho quanto noutro, para deixar-se enganar assim pelas dimensões. Mas o professor tinha a habilidade de apequenar-se a cada abraço que estendia aos pequeninos que se lhe abriam os braços, a cada suave aperto de mão que oferecia aluno por aluno poucos instantes depois de adentrar à sala de aula, bem como mais parecia um coleguinha de classe quando explicava o conteúdo no dialeto infantil.
Professor àquela aula fê-la inesquecível, não somente para o saudoso aluninho, a classe toda jamais a esqueceu. A turminha ainda estava agitada, a aula era depois do recreio, e Professor abraçou quem lhe queria abraçar, cumprimentou aos alunos um a um, estendendo-lhes uma das enormes mãos, como de costume, mas a seguir apenas sentou-se contemplativo, em silêncio. Seu sorriso era curto, mas profundo, misterioso, mas revelador, mudo, mas falava tudo. Aos poucos, os alunos foram acalmando-se, aquietando-se, deixando-se experimentar o silêncio que Professor falava. Quando a turma toda calou-se, paralisada e ansiosa pelas primeiras palavras, o aluno da espera larga não conteve-se e indagou Professor, Tu não vai falar nada. Professor respondeu-lhe a ele e à turma, Mas eu já to falando desde que eu entrei na sala, e o disse sem alterar expressão. Os alunos olharam-se, ainda sem compreender àquelas palavras, quando Professor prosseguiu, Hoje a aula é sobre o silêncio. O mesmo aluno da primeira pergunta, já impaciente, alegou, Mas o silêncio não é nada. Não é não, sentenciou Professor, e propôs, Eu quero que vocês fiquem quietinhos por cinco minutos, eu vô contar no relógio hein, e depois a gente conversa. Os alunos, ainda muito novinhos para tal, não conseguiam chegar ao entendimento de como aquilo viria a ser uma aula, O professor tá loco, pensaram alguns, mas fizeram o que Professor pediu, ficaram em silêncio, olhando para todos os lados, rindo-se sem saber do que.
Passados os cinco minutos combinados, quando Professor fez sinal, ora veja-se, o mesmo inquieto aluno, aliviado, perguntou em voz alta, mais por aflição de passar tanto tempo sem falar do que por outro motivo, E agora professor. E Professor, Eu é que pergunto pra vocês, o que vocês aprenderam. A turma ficou ainda mais desconcertada, e muitos alegaram, Nada, né sor. Professor seguiu, emendando perguntas, Vocês tem certeza, vocês não viram nada, vocês não ouviram nada. Uma inafastável excitação de descoberta atingiu-lhes todos os pequeninos corações, corando-lhes a tenra pele da cútis, e puseram-se a falar desorganizadamente, cada qual intentando ser-se o primeiro atendido. Professor permaneceu em silêncio, à espera do mesmo a sala de aula, até que o aluno inquieto aquietou-se e, como num sinal disto, levantou a mão para pedir vez. Professor atendeu, Silêncio meus queridos, ele vai falar primeiro. E o aluno disse, Eu vi os teus olhos de cansado, professor, tu tá cansado né. Obrigado por perguntar, disse Professor, ninguém tinha me perguntado isso hoje. O aluno entendeu que através daquele silêncio havia pela primeira vez reparado no semblante cansado do querido professor, e que o professor alegrava-se pela sua preocupação, com certeza este aluno tentará reparar mais nos semblantes dos seus queridos, a fim de adivinhar-lhes o estado. Depois, Professor passou a vez para uma menininha, que disse, Professor, eu ouvi um carro passando e um cachorro latindo, e o som dos dois começaram juntos, passaram juntos, e terminaram juntos, eu acho que era o meu pai de caminhonete com o meu cachorro em cima, ele sempre vai junto com o pai pro centro, na carroceria, com a cabecinha por cima do capô pra pegar bastante vento, tanto vento que as orelhinhas dele ficam bem pra trás e os olhinhos puxados, parece um japonês, hihihihi!. E Professor, sorrindo, disse, Muito bem, querida. E assim passaram-se os minutos, fartos de exemplos de sons que começaram-se a perceber, expressões de rostos a repararem-se, sorrisos a notarem-se, aromas a achegarem-se ao olfato, texturas a tatearem-se às pontas dos dedinhos, cartazes temáticos de sala de aula a saltarem-se aos olhinhos, e muitos mais exemplos de percepção e sensibilidade suscitadas ludicamente pela atividade silenciosa do professor.
Ao fim, Professor arrematou, Dizem que o silêncio vale mais do que mil palavras; eu não sei se isso é verdade, mas eu sei que ele faz a gente “abrir os olhos”.

(Danilo Kuhn)


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